sábado, 6 de junho de 2015

Espelhinho no canto, por Thiago Almeida Ferreira.



Uma casa sem espelho, desses que refletem tudo, refletem as rugas, as placas causadas pela nicotina em seus dentes, os olhos marejados, o cabelo bagunçado e o estrago que o álcool tem lhe causado. Limpa a poeira e te olha, observa teu rostinho sorrindo, observa tuas mãozinhas ressecadas, engole o choro, passa batom, te ajeita e perfuma.




Quando esse espelho quebra, o que resta? Parece que a solidão aumenta, não poder olhar pra ti mesma e sentir-se presente, o rito de limpar as manchas causadas pelos folículos de impureza não mais existe, tuas mãos segurando teu fumo buscam o paninho branco pra tirar a sujeira. Mas ele quebrou-se, até teu rito secreto de olhar-se em meio aos estilhaços finda. O lixeiro levou teus grandes pedaços. Ainda bem que já está curada daquele vicio de lhe causar cortes a si mesma, nem mesmo aquela lamina pontiaguda lhe causa desconforto.





Ainda bem que lhe restou tua vitrola e a colchinha de chinil, aquela vermelha com alguns buracos causados pelos cigarros, tu esquenta teus pezinhos gordinhos debaixo dela e escuta tuas canções. Quando a garrafa de café seca, logo prepara um fresquinho. Quando alguma visita chega torce silenciosamente que ela dali lhe arranque e te leve para o bar, e daí então fecha teus olhos quando sente o gosto do licor tocando sua língua áspera e grossa por conta da fumaça: estás extasiada.




Embriaga-se minha florzinha, embriaga-se. Ri, fala tanto de suas verdades mas mantêm seus segredos ocultos, olha pra calçada e pensa aliviada que não terás teu companheiro espelho pra lhe vigiar quando chegares em casa alterada e tentando dormir,  e quando levantar-se na calada da noite e montar feito um quebra cabeça aquele retrato que ela mesmo rasgasse. Mas mesmo assim, mesmo cansada pensa que no dia que virá  a tua primeira compra será teu velho amigo espelho. Fica envaidecida diante de seu reflexo também, sua lua em leão deixa-lhe às vezes fogosa e tem desejos próprios dessa combinação astral.




Fala coisa com coisa, sonha em ser atriz, cantora, estrela do rádio e do cinema, veste todas suas roupas e quando fala de ti, ela não poupa palavras. Às vezes olha desconfiada por de trás de seus ombros, pelo o reflexo o altar de santos que há tanto ela permanece devotada. Fica sem ordem, fica nua, se perfuma com elixir de flores, sente-se às vezes flutuando sob as nuvens outrora passeia próxima do fim. Minha pedrinha preciosa busca mesmo seus refúgios é sozinha, calada, olhando-se.